Para começar, não fazia ideia da existência de um povo indígena na Europa quando parti para a Escandinávia. Escolhi o tour “Cultura Sami, renas e Trilhas pelas Montanhas Dalarna” pela oportunidade de conhecer a cultura local e fazer trilhas com renas próximo ao Polo Norte. 

Então estava em Oslo dias antes do início do tour e tive a primeira introdução ao povo Sami no Museu de História da cidade. Uma exposição mostrava sua origem, como vivia, o preconceito e como alguns vivem hoje inseridos na vida contemporânea. Ao observar a relação deles com as renas fiquei ainda mais empolgada com o que iria encontrar nos próximos dias. Realmente, todas as expectativas foram superadas positivamente acompanhadas de uma enxurrada de aprendizados.

Viajando desde a infância desenvolvo empatia ao ver o diferente e buscar me inserir nele para entender ao invés de achar exótico ou estranho. Sempre com respeito para não ser invasiva e muito observadora para captar a sutileza dos limites. E não foram poucas vezes que aprendi mais sobre mim mesma e meu país identificando semelhanças e diferenças nas viagens internacionais. Por vezes é preciso ir bem longe para valorizar o que está perto ou abafado pelas “regras” da sociedade onde estamos inseridos. Compartilho uma dessas percepções neste artigo.

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O que é Sami?

Sami é o povo indígena que ainda resta na Europa, os nativos se espalham pela região cultural chamada Lapônia há 3500 anos. Lapônia ocupa parte dos territórios nórdicos: Finlândia, Noruega, Suécia e Rússia. 

Desde a Idade Média sofrem com a perda de terras e acesso limitado aos seus recursos naturais devido à migração para as áreas que habitavam. Seu idioma chegou a ser proibido e sua cultura relacionada à prática diabólicas quando cristianismo era a crença predominante. E assim continuou até metade do século passado como mostra o trailer o filme “Blodi Sami” ho YouTube. A questão das terras e reconhecimento ainda é um problema, porém, há mais espaço para expressão cultural atualmente.

Cultura Sami, renas e Trilhas pelas Montanhas Dalarna

Família Sami na Suécia
Eu, Peter e Helena

A esposa de Peter Andersson, a sueca Helena que se apaixonou por ele e a cultura Sami quando foi trabalhar nas montanhas Dalarna, preparou o terreno respondendo perguntas e explicando como seria o roteiro.

O indígena Peter, homem branco de olhos azuis, cabelos grisalhos e estatura baixa, chegou para o jantar de forma reservada e sorriso tímido avisando que os próximos dias seriam com ele desbravando as montanhas e planícies da região a pé. Dalarna é o ponto mais ao sul onde os Samis são encontrados, a maioria vive no norte da Noruega e Suécia, na Sibéria e por toda a Finlândia.

Indígena da Europa sorri com xícara cheia de água na mão
A tradicional Guksi, xícara de madeira Sami feita em madeira de bétula, útil quando pastoreiam as renas e bebem água direto dos córregos da região

Passamos seis dias juntos em um grupo heterogêneo de aventureiros das Américas, Europa e Ásia. O que foi ótimo para o aprendizado mútuo e várias quebras de pré conceitos. Enquanto a maioria dos presentes sabia pouco mais que eu sobre os indígenas da Europa, uma viajante tinha bastante conhecimento, compartilhava conosco e ficava podando nossas perguntas tentando proteger Peter. Embora a maioria não fizesse perguntas desconfortáveis, as dúvidas eram comuns a todos e as respostas vieram conforme fomos nos conhecendo e nos colocando um no lugar do outro. Afinal, se não ouvíssemos a versão dele naquele momento, teríamos aquela generalizada que pode estar completamente equivocada.

Compartilhamos no grupo experiências anteriores com povos originais e essa troca deu novos significados ao aprendido anteriormente. Como a preocupação de levar novas doenças aos nativos isolados ser algo atual para os europeus sem perceberem que foi o primeiro grave problema gerado na época da colonização das Américas. Ou os tantos recursos desperdiçados por não ouvir a real necessidade de um lugar direto de quem vive ali, implementando projetos grandiosos que acabam inúteis quando os incentivadores vão embora.

Grupo de pessoas na floresta com um indígena na Europa
Parte do nosso grupo

Dica: é melhor estudar a cultura e história antes do primeiro contato e, ainda mais importante, é estar aberto a uma versão completamente diferente do esperado.

O vínculo com as renas e outras curiosidades

Desde os tempos que Sami era um povo totalmente nômade, a conexão com as renas é muito forte. Os animais buscam alimentos com eles nos longos meses de inverno porque a neve impede o acesso e eles também as utilizam para sobrevivência ao abater e domesticar algumas. Ao ser questionado porque iríamos preparar e comer carne de rena se havia tanto afeto e respeito entre eles, Peter respondeu:

“Nós dedicamos a vida a pastorear às renas mantendo elas alimentadas e em movimento mesmo nas piores condições climáticas, é justo elas nos devolverem ao final da vida através do alimento, vestimenta, artesanato e tantos outros utensílios porque nenhuma parte do animal é desperdiçada.”

Rena
Rena com chifres enormes e polidos por ela mesma

Por lei, Sami são os únicos permitidos a caçar e criar renas na Escandinávia. Também há outra protegendo as renas e os seus valiosos chifres não podem ser retirados de forma alguma. É natural eles perderem o pelo e cairem com o tempo, e aí sim, quem encontra um chifre de rena na natureza pode se apropriar da peça e fazer o que quiser com ele.

Rena no campo com dois filhotes
Lovis é a rena de estimação da família Andersson que nos acompanhou como um cachorrinho na caminhada. Foi encontrada órfã com poucos meses e correndo risco de vida. Em 2020 teve seu primeiro filhote e Helena mandou as fotos toda orgulhosa da cria.

Yoiking é a música e o jeito ancestral dos Samis contarem suas histórias. Mesmo sem entender a letra, fez todo sentido ouvir a melodia ao redor da fogueira do nosso acampamento. É sempre pessoal expressando sentimentos e acontecimentos, geralmente compartilhando com família e amigos próximos.

Tipi e barraca para os Samis, inicialmente era a casa feita de terra coberta por vegetação com uma porta e sem janelas onde as famílias nômades passavam temporadas. Ainda há algumas nos campos que são pontos históricos. Atualmente são de lona com abertura no topo para sair a fumaça da fogueira, devido ao frio, neve e vento, eles preparam as refeições no interior da barraca.

No meio da caminhada com as renas, no terceiro dia, Peter ficou incomodado com o falatório do nosso grupo revelando que estávamos perdendo a oportunidade de nos conectarmos com a natureza. Disse fazer esse caminho há décadas em silêncio mesmo quando acompanhado por outras pessoas e pediu 20 minutos de silêncio para depois compartilharmos as sensações. As horas seguintes foram completamente em silêncio até chegarmos ao acampamento, quando todos ficaram agradecidos pela reação dele. Sentir o chão fofo, catar frutinhas e líquens a serem usados no nosso jantar e observar tudo ao redor foi para outro patamar, embora eu pratique o silêncio nas caminhadas há um bom tempo.

Caminhando com novos amigos, rena e um indígena na Europa
Não parece, mas o chão é cheio de frutinhas e líquens que a rena adora

O que aprendi caminhando com um indígena na Europa

Rena, Roberta e Peter, indígena na Europa, caminham em tábuas de madeira
Lovis, eu e Peter no início da trilha

Estar em movimento e contato com o meio ambiente é levado muito a sério e foi herdado pelos suecos sem importar o clima. Esse pensamento coletivo fez ter muitas florestas a curtas distâncias e com fácil acesso desde as cidades. Na Suécia, fazer trilha não é apenas caminhar, é se conectar com a natureza ao redor, ouvir, sentir, respirar e aprender novas habilidades com o que está disponível. 

Não por acaso a menina sueca Greta Thunberg é ativista ambiental. O que percebemos hoje como crise climática nos afetando nos países tropicais, é notado nos polos, extremos do planeta terra, há anos e ela cresceu com perspectivas catastróficas sobre o futuro.

Durante o tour, Peter nos levou a lugares lindos, no entanto, chamava com frequência atenção para o que tem mudado devido aos efeitos climáticos, provou que a preocupação é real e como o povo Sami pratica sustentabilidade desde sempre e tem ensinamentos úteis para ajudar nesse problema global. 

Assim como os povos originais do Brasil são tão diversos, os Samis também  são heterogêneos e tratados de forma diferente por cada governo. Segundo Peter, o visto no museu de Oslo pode ser realidade na Noruega, mas é bem longe do vivido na Suécia onde os interesses econômicos continuam tirando terras e direitos deles. Então lembrei das cobranças da Suécia ao governo brasileiro sobre a proteção da Amazônia e percebi como eles também não enxergam os próprios problemas e saem culpando os outros. Enquanto isso, Finlândia e Noruega tem um parlamento Sami garantindo seus direitos.

A criação do receptivo Renbiten, responsável pelo tour e situado em Idre, foi motivada pelo cansaço em brigar com o governo pelos seus direitos. Peter percebeu que poderia ampliar a voz do seu povo através do turismo e está indo longe com artigos e depoimentos espalhados por todos os continentes. Com Helena criou a loja de souvenir e venda de derivados das renas como a carne que é muito saudável por ser a única com ômega três. Além disso, uma das filhas deles é dançarina e se apresenta pelo mundo levando as danças típicas, música e cultura Sami.   

Os indígenas do mundo estão se unindo em uma rede de contatos e percebendo que muitos dos principais problemas acabam sendo os mesmos não importa a cultura ou localização. Atualmente participam de congressos, como a Conferência de Turismo Indígena Internacional, fazem intercâmbios e dão palestras visando trocar informações e unir forças. A Adventure Travel Trade Association (ATTA) é um dos incentivadores desse movimento e ter participado do seu evento Adventure Travel World Summit Sweden me proporcionou ter essa experiência incrível na Suécia. 

Vista da planície do interior de uma barraca tipi
Dormimos em barracas de lona onde a única proteção do solo era a pele de rena

Como quebrar pré conceitos aprendendo com os povos originais

Mesmo morando no Brasil e passado por indígenas em diversos momentos da vida, minha curiosidade sobre eles mudou após a experiência com um indígena na Europa. Peter representou o povo Sami compartilhando sua rotina, história e lutas. Embora milenares, ainda lutam por reconhecimento e têm uma história de colonização e discriminação semelhante ao que aconteceu em todos os continentes do planeta.

Até aquele momento minhas experiências com indígenas se limitavam a observar com certa distância, ouvir histórias contadas por brancos como na excursão ao Outback australiano ou ser servida em algumas atividades turísticas como os carregadores de bagagem do Monte Roraima. O mais próximo teria sido a visita aos Masais durante uma tarde no Quênia, mas o pouco tempo e fato de eu ser mulher deixou um tanto impessoal. Enfim, entre os vários questionamentos vieram esses: se eu gosto tanto de conversar com locais porque nunca puxei assunto com o indígena que vende seu artesanato nas feiras de Porto Alegre ou nas estradas da BR-116? Porque aceitei a história que aprendi na escola sem nunca ouvir o que eles tem a dizer nos diversos momentos que cruzaram meu caminho nas viagens pelo Brasil?

Então voltei para uma feira de turismo em São Paulo (ABAV), busquei na programação o que teria sobre indígenas e encontrei uma palestra que em poucos minutos quebrou outros tantos pensamentos antiquados.

Muitos de nós brasileiros enxergamos os povos indígenas de forma estereotipada, criando a ilusão que devem permanecer parados no tempo como seus antepassados para serem autênticos. O quão estranho seria para um turista visitar uma aldeia e encontrar nativos usando celular e computador? A verdade é que assim como nós usufruímos da modernidade e tecnologia preservando nossas origens e tradições, eles também podem e assim evoluímos todos juntos.

Enfim, passei a ler artigos e livros sobre o tema, comecei a seguir ativistas e se não fosse a pandemia chegar meses depois, teria mais experiências para contar porque vou puxar assunto com o próximo indígena que cruzar o meu caminho. Talvez ainda não tenha acontecido porque a menor porcentagem vive aqui no Rio Grande do Sul.

Segundo estudo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) baseado no Censo de 2010, há cerca de 900 mil indígenas no Brasil divididos em 305 etnias falando cerca de 274 línguas diferentes. A região Norte abriga 37,4%, seguida 25,5% no Nordeste, 16% no Centro-Oeste, 12% no Sudeste e 9,2% no Sul.

Algumas sugestões sobre indígena na Europa, no Brasil e na Oceania

Para quem gostou e quer aprofundar seus conhecimentos sobre os povos indígenas, vou atualizar as informações conforme novas descobertas são feitas e convido a deixar sua sugestão nos comentários.

Ler: “Dear Son”
O australiano de Darwin, Thomas Mayor criou uma compilação de cartas profundamente pessoais de pais e filhos aborígenes e escreve na introdução do seu livro:

“Quando menino, na escola, aprendi que meus antepassados eram pouco inteligentes e desumanos, enquanto meus amigos brancos aprendiam que seus antepassados eram grandes exploradores, construtores e nossos salvadores”.

Amazônia Real
Agência de jornalismo independente e investigativo criada por mulheres locais da Amazônia, as jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias.

Assistir: Sami Blood
Obs: tenho procurado, mas ainda não consegui ver o filme por não estar disponível em nenhum streaming no Brasil. Quando encontro e aperto o play diz não estar disponível no meu território.

Seguir: @alice_pataxo @_ailtonkrenak no Instagram.

Tours

Lembrando que nestas experiências pode ter o feito para turista ver, o nem sempre sustentável e a realidade, leia as resenhas e avalie se vale a pena antes de escolher.

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Fotos de Roberta Martins, Maren Krings e Vishwas Makhija.

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Autor Roberta Martins

Comunicadora, idealizadora deste site, fotógrafa e guia de turismo. Há 16 anos relata suas experiências de viagem focando em cultura e aventura. Saiba mais na página da autora. Encontre no Instagram

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